1ª Guerra Mundial

Introdução


 - Crise económica, social e política - 

"As guerras e as revoluções - há sempre uma ou outra em curso chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrifício de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma - variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva."

Bernardo Soares, Livro do Desassossego.


O aumento do custo de vida na 1ª Guerra Mundial 

A defesa das colónias portuguesas em África disputadas pela Alemanha fez com que os governantes republicanos, no ano de 1914, enviassem militares para Angola e Moçambique. No ano de 1916, o governo sob a presidência de Afonso Costa defendeu a entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial, ao lado dos Aliados.

A participação de Portugal na 1.ª Guerra Mundial, com o aumento das despesas e o elevado número de mortos e feridos (1), comprometeu a recuperação económica do país, a estabilidade política e conduziu ao agravamento do descontentamento popular.

A República, implantada no nosso país, no dia 5 de outubro de 1910, revelou a sua incapacidade para equilibrar a balança comercial, permanentemente deficitária e agravada com a participação de Portugal neste conflito armado.

A carência de bens essenciais (pão, carvão, gás, açúcar, batatas) fez subir os preços dos produtos, os quais eram sujeitos ao racionamento (cada família podia adquirir apenas uma quantidade fixa de bens de consumo). A falta de bens essenciais criou, no nosso país, problemas de índole social, sobretudo, a partir do ano de 1917, com a subida do custo de vida, enquanto os ordenados se mantinham baixos.

A crise fez aumentar os assaltos e os roubos, essencialmente, a mercearias e padarias pois os bens de consumo mantinham-se a preços elevados.

O governo sob a liderança de Afonso Costa procurou fazer face a esta situação pedindo mais bens aos seus aliados e criando asilos, apoios e cantinas sociais. No entanto, apesar destas iniciativas, continuou a existir falta de gás, carvão e pão... A fome conduziu ao aumento do consumo de batata e quando os comerciantes tomaram a decisão de procederem ao aumento dos preços das mesmas sucedeu-se uma revolta popular de grandes proporções. A "Revolta da Batata", como ficaram conhecidos os confrontos ocorridos no mês de maio, do ano de 1917, provocou dezenas de mortes. O Governo viu-se, então, obrigado a implementar o Estado de Sítio. Mas o descalabro persistiu... Houve uma sucessão de greves que foram divulgadas na imprensa. Foi imposta a censura aos jornais e alguns jornalistas chegaram mesmo a ser presos, mas Afonso Costa não conseguiu controlar esta situação.

Podemos afirmar que a participação de Portugal na Grande Guerra provocou tensões sociais, políticas e económicas, devido ao elevado número de mortos (provocados também pela gripe pneumónica, que muitos soldados tinham contraído em França) e aos sacrifícios exigidos ao país para fazer face às despesas da guerra. Assistiu-se, neste período da História, a uma degradação progressiva das condições de vida dos trabalhadores, pois os salários não acompanhavam a subida dos preços e o desemprego era elevado, o que contribuiu para o aumento da fome e da miséria no nosso país. As manifestações e as greves tornaram-se frequentes e o aumento do custo de vida fez crescer a inflação ("A falta de bens de consumo, os racionamentos e as especulação desesperaram os Portugueses, em especial os estratos mais desfavorecidos. Com a produção industrial em queda, o défice da balança comercial cresceu. A dívida pública, problema estrutural das nossas finanças, disparou. A diminuição das receitas orçamentais e o aumento das despesas conduziram os governos ao expediente então usual noutros Estados: o da multiplicação da massa monetária em circulação que desvalorizou a moeda e originou uma inflação galopante. O processo inflacionista permaneceu para além da guerra. Repercutiu-se no aumento do custo de vida, afetando, particularmente, os que viviam de rendimentos fixos e poupanças, as classes médias, bem como os operários vítimas do desemprego."- (2) ).

Num quadro pouco favorável ao sucesso da República (instabilidade governativa, laicismo da República), a participação portuguesa na 1ª Guerra Mundial revelou-se fatal pois contribuiu para a queda deste regime político.


(1) "Com uma preparação rápida - apelidada de "milagre de Tancos"- mas deficiente, o Corpo Expedicionário Português, sofreu dolorosas perdas. Dos 89 mil homens recrutados, contabilizaram-se mais de 5 mil mortos na França e na Flandres, que se somam aos cerca de 3 milhares falecidos em Angola e Moçambique. Os números de guerra incluem, ainda, os feridos, os prisioneiros e as populações civis massacradas em África." - Célia Pinto do Couto, Maria Antónia Monterroso Rosas, Um Novo Tempo da História, Parte 1, História A, 12.º Ano, Porto, Porto Editora, 2015, pág.84.

(2) Célia Pinto do Couto, Maria Antónia Monterroso Rosas, Um Novo Tempo da História, Parte 1, História A, 12.º Ano, Porto, Porto Editora, 2015, pág.85.





Vídeo RTP Ensina - O aumento do custo de vida na I Guerra Mundial

A guerra arrastou a economia portuguesa para uma crise profunda, tirando da mesa dos portugueses pão, carne ou batata. Estes problemas degeneraram, em 1917, numa série de revoltas populares que culminaram no golpe de Sidónio Pais no final do ano.

https://ensina.rtp.pt/artigo/__trashed-17/


Entrevista Escrita à Historiadora Maria Alice Samara

1.A participação de Portugal na 1.ª Guerra Mundial acarretou consequências económicas para o nosso país. Que tipo de dificuldades económicas foram sentidas em Portugal neste período?


Os efeitos económicos (e concomitantemente sociais) da I Guerra Mundial, fizeram-se sentir logo a partir de 1914, dois anos antes da declaração de guerra. Um dos principais problemas, sentidos pela maioria da população era o das "subsistências". Portugal, para satisfazer as suas necessidades, necessitava de importar, o que se tornava crescentemente mais complicado e dispendioso no contexto da desarticulação dos circuitos comerciais. Surpreendemos, assim, uma associação entre a escassez de géneros, a carestia ou alta de preços e o açambarcamento (mercado negro). Para muitos tornava-se difícil ter acesso aos bens de primeira necessidade, a começar pelo pão, base da dieta alimentar. A situação económica e financeira do Estado Português deteriorou-se, sobretudo depois de iniciados os preparativos militares. Com o aumento da despesa pública e do deficit orçamental, os governos recorriam tanto a empréstimos externos como internos. A conjuntura económica foi marcada por dificuldades, mas também por desigualdades. Além das diferenças entre os vários grupos sociais, alguns sectores como os açambarcadores, comerciantes grossistas ou aqueles que tinham "negócios de guerra" enriqueciam. A crise económica trouxe consigo um profundo descontentamento social registando-se vários levantamentos, motins e manifestações, que tinham lugar, usualmente, em contextos de maior agudização da crise das subsistências, bem como movimentos grevistas que lutavam, sobretudo, pelo aumento de salários para fazer face ao custo de vida. Vale a pena fazer referência à denominada "Revolução da Batata", de Maio de 1917. Em Lisboa (mas também nos seus arredores e um pouco por toda a província) a população assalta estabelecimentos comerciais e envolve- -se em confrontos com a polícia, dos quais resultam vários mortos e feridos, sobretudo entre os populares

Fonte: Centenário da Primeira Guerra Mundial (1914-2014). A Grande Guerra, in Amphora, Revista de divulgação histórica da Associação de Professora de História, número 2, outubro de 2014. 

2. A entrada de Portugal na Grande Guerra agravou o desagrado social que se sentia relativamente à 1.ª República?


A crise económica, social e política decorrente da I Guerra Mundial agudizou as tensões da sociedade portuguesa. Em finais de 1917 a oposição ao governo de Afonso Costa, o rosto da intervenção de Portugal, refletia o cansaço com a situação e a crise de guerra. O golpe sidonista congregou descontentamentos vários, de entre os quais os do movimento operário que sofrera uma forte repressão durante os movimentos grevistas. O golpe de 5 de Dezembro contou, de entre as várias forças que o apoiavam, com o "bravo 33", militares que apoiando o golpe não embarcaram para a Flandres. As relações do mundo católico com a República e com o governo democrático entraram numa fase de maior agudização. No ano das aparições Marianas (maio a outubro de 1917), o ministro da Justiça do governo Afonso Costa reabriu a questão religiosa, aplicando com todo o rigor a Lei de Separação, expulsando das suas dioceses o bispo de Lisboa, D. António Mendes Belo, e o bispo do Porto, D. António Barroso. O arcebispo de Braga e o de Évora seriam, no final do ano condenados ao desterro. No entanto, na conjuntura política da "Monarquia do Norte", da luta contra os monárquicos e da resposta em Lisboa, a mítica escalada de Monsanto, que significou a aliança entre republicanos, o povo e os trabalhadores organizados, podemos perceber que a República continuava a ter apoio na sociedade portuguesa.


Entrevista Historiadora Alice Samara

Nesta entrevista, a historiadora Alice Samara explica:

- As causas e consequências da crise económica e financeira de finais do século XIX. As condições de trabalho neste período da história de Portugal.

- As consequências políticas, económicas e sociais da participação de Portugal na 1.ª Guerra Mundial. O mundo laboral é também alvo de análise. (a partir de 13:08).

- Os efeitos do crash da Bolsa de Nova Iorque em Portugal.  

Impacto económico da Grande Guerra em Portugal

Por Ana Paula Pires

No final de 1919, estimava-se que as despesas da participação portuguesa na Guerra rondassem 1 400 000 contos. Se olharmos para além dos números, verificamos que as marcas deixadas pelo conflito mundial não se esgotaram no desequilíbrio orçamental e no aumento do endividamento externo.A I Guerra Mundial teve um impacto globalmente negativo no percurso económico português. Agravou uma crise económica endémica, e interrompeu o equilíbrio orçamental conseguido por Afonso Costa e pelos Democráticos em 1913, inibindo quaisquer possibilidades de progresso económico, a médio e longo prazo.A conjuntura de Guerra não permitiu à agricultura, com exceção do breve período do sidonismo, inverter a queda de grande parte das suas produções, acentuando uma tendência que há muito se vinha verificando. O setor foi globalmente afetado não só pelas dificuldades de acesso a determinados fatores de produção (sementes, adubos), mas também pelo retraimento da exportação de alguns produtos base da economia agrícola, nomeadamente o vinho do Porto, e por uma conjuntura climatérica pouco favorável. Por outro lado, algumas medidas adotadas, nomeadamente o tabelamento de preços e a obrigatoriedade do manifesto das produções, acabaram por ter também reflexos negativos, gerando o descontentamento nos meios agrários.A indústria portuguesa acabou por tirar partido da conjuntura. Vale a pena ter presente que a impossibilidade de importar deu espaço e argumentos ao sector para desenvolver indústrias que noutras condições nunca teriam sido lucrativas.Assinale-se por fim o impacto das perturbações trazidas pelo conflito mundial (carência aguda de géneros e produtos alimentares de primeira necessidade e dificuldades de abastecimento) no agravamento da situação social do operariado e das camadas mais baixas do funcionalismo público, nos pequenos agricultores e nos titulares de rendimentos fixos, destacando, desde logo, a desvalorização dos salários reais, a insuficiência das produções, problemas de distribuição e o açambarcamento. Condicionantes que, por si só, estiveram na origem, a partir de 1917, de momentos explosivos de agitação social - greves, motins e assaltos - protagonizados por um movimento operário cada vez mais descontente e contestatário.No seu conjunto a participação de Portugal na I Guerra Mundial ditou o fim da I República. A Guerra pôs a nu, exacerbando-as, todas as clivagens que tinham caracterizado o regime desde a sua implantação, em Outubro de 1910: acentuou a impopularidade do Partido Democrático e de Afonso Costa e contribuiu para intensificar o conflito entre o movimento operário e a República.

Fonte: Ana Paula Pires, "Impacto económico da Grande Guerra em Portugal", A Guerra de 1914 - 1918, www.portugal1914.org


Vídeo RTP Ensina - Razões da entrada de Portugal na 1ª Guerra Mundial. 

O medo de que as colónias portuguesas servissem de moeda de troca entre as potências em conflito levaram Portugal a envolver-se também na frente Europeia durante a 1.ª Guerra Mundial.

https://ensina.rtp.pt/artigo/entrada-portugal-1-guerra-mundial/ -






Vídeo RTP Ensina - A Alemanha declara guerra a Portugal

No dia 9 de Março de 1916 a Alemanha declarou guerra a Portugal. A decisão de Berlim surgiu na sequência do apresamento dos seus navios que, desde o início do conflito, estavam refugiados no Tejo.

https://ensina.rtp.pt/artigo/a-alemanha-declara-guerra-a-portugal/ -


A Futilidade da Guerra

Por Pedro Aires Oliveira 

A sensação de futilidade que muitos europeus viriam a experimentar em relação aos sacrifícios exigidos, atendendo à trajetória das relações internacionais entre 1919-39, foi porventura vivida pelos portugueses ainda mais cedo. Com efeito, em 1918, não só o país emergia do conflito economicamente exangue, como depressa resvalaria para um novo ciclo de violência e instabilidade, que se revelaria fatal para a sobrevivência das próprias instituições republicanas. Em Paris, na Conferência de Paz, um Afonso Costa regressado à ribalta depois do interregno sidonista, jogaria o último grande lance político da sua carreira, tentando convencer a opinião pública de que os sacrifícios suportados não haviam sido em vão. O seu talento de causídico, porém, não foi suficiente. Portugal saiu da reunião com um prémio que à época não pareceu insatisfatório: uma percentagem de 0,75 das reparações de guerra a endossar à Alemanha. Mas, nos anos seguintes, essas compensações estariam enredadas num complexo contencioso, acabando por não ajudar à amortização da dívida de £ 20 milhões contraídas junto da Grã-Bretanha. Não tendo logrado obter qualquer compensação territorial em África (à exceção da restituição do pequeno território de Quionga, no norte de Moçambique), Costa e os seus apoiantes na imprensa tentaram fazer passar a ideia de que os ganhos nacionais eram essencialmente negativos - ou seja, valera a pena participar na guerra porque assim se teriam evitado males maiores, nomeadamente em África. Essa ideia contudo parecia ser posta em causa pelo que aconteceu a outras potências que conduziram uma beligerância seletiva, ou se mantiveram neutrais. O Japão, que se confinou a operações militares no Oriente, emergiu como um dos grandes vencedores do conflito, expandindo a sua influência na China e assegurando um mandato da SDN no Pacífico Sul. Por seu turno, a Espanha neutra obteria um lugar (não permanente) para o Conselho Executivo da Liga, objetivo igualmente disputado por Portugal. Era um muito magro pecúlio, o que levou um Afonso Costa enfurecido a lavrar um protesto irado nas atas da conferência: "Peço que o meu país, que enviou para França os seus soldados, seja pelo menos tratado como aqueles países que não enviaram para França mais do que os seus caixeiros-viajantes". Numa perspetiva mais benévola, poder-se-ia alegar que num mundo onde as relações de força ditavam a lei, talvez Portugal não tivesse outra alternativa que não a de procurar defender os seus interesses com algum voluntarismo. Mas essa linha de raciocínio não leva em conta a regra da prudência que deverá, em princípio, guiar qualquer política fundada na "razão de Estado": a necessidade de avaliar os meios e os fins, ações e consequências. E aqui é difícil não exprimir alguma perplexidade em relação ao voluntarismo republicano. A realidade, nua e crua, é que Portugal estava longe de reunir as condições mínimas - financeiras, económicas, logísticas, materiais e morais - para um desempenho satisfatório na Frente ocidental. Entre outras coisas, foi a insistência nessa participação que agravou dramaticamente a situação financeira do país (endividamento, inflação galopante) criando, em última análise, as condições para o advento de soluções de cariz extraparlamentar. Quem semeia ventos, colhe tempestades. Nos anos subsequentes, alguns países europeus tornaram-se autênticos case studies das conexões entre beligerância, crise política e advento de soluções ditatoriais. Nuns casos, como a Itália, a Némesis dos intervencionistas seriam os esquadrões fascistas obcecados com a ideia da "vitória mutilada". Noutros, seriam os oficiais do exército que se atribuíram a si próprios a missão de redimir a política dos respetivos países - foi esse o caso do 28 de Maio português, movimento liderado por um antigo comandante de uma das divisões CEP, o general Gomes da Costa. A memória da Grande Guerra, no nosso país, nunca deixou de estar de algum modo refém das controvérsias que o envio do CEP para França suscitou. Talvez isso explique por que nunca foi possível estabilizar uma data evocativa dos sacrifícios exigidos pela beligerância. Nos anos 1920, os legisladores republicanos hesitaram entre o 11 de Novembro (dia do Armistício), o 14 de Julho (o feriado nacional de França, onde o CEP havia combatido), o 10 de Junho (o Dia de Camões) e o 9 de Abril (dia da batalha de La Lys). Durante alguns anos, esta última data - o dia do martírio do CEP, também designada como o "dia do Esforço da Raça" - pareceu reunir algum consenso. Todavia, o facto das cerimónias associadas à homenagem aos mortos da Grande Guerra inevitavelmente atraírem figuras com responsabilidades políticas durante a República fez com que o regime saído da Ditadura Militar, o Estado Novo de Salazar, demonstrasse um menor empenhamento na evocação da participação portuguesa no conflito. E assim, rituais observados com grande solenidade noutros países aliados, como os dois minutos de silêncio na tarde do dia 11 de Novembro, nunca ganhariam raízes em Portugal.

Fonte: Centenário da Primeira Guerra Mundial (1914-2014). A Grande Guerra, in Amphora, Revista de divulgação histórica da Associação de Professora de História, número 2, outubro de 2014. 


As Mulheres Portuguesas e a Grande Guerra

A mobilização feminina na guerra de 1914 a 1918

A Grande Guerra, iniciada na sequência de um incidente político, o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, depressa alastrou por toda a Europa, graças ao sistema de alianças entre países que lutavam entre si pela hegemonia comercial e o domínio colonial. Pensava-se que seria uma guerra curta por desconhecimento das potencialidades das descobertas científicas, das novas armas e novas técnicas aplicadas aos conflitos militares. Em todos os países beligerantes, os homens foram mobilizados e, perante o impasse gerado pela guerra das trincheiras que se perspetivava longa e devoradora de homens e armas, as mulheres tornaram-se necessárias em todas as atividades económicas e foram também mobilizadas, apesar da renitência inicial de alguns governos em admitirem a necessidade da sua participação. A França e a Inglaterra mobilizaram-nas para a frente interna e para a frente de combate para a assistência hospitalar e serviços auxiliares do exército, enquanto a Itália recusou, apesar do Comitato Nazionale Femminile per l'Intervento Italiano ter sugerido que se recrutassem todas as mulheres entre os 14 e os 48 anos. No entanto, tal como nos outros países em guerra, elas estiveram presentes na agricultura, na indústria, inclusive na indústria de armamento, nos transportes, na banca, na administração pública, na saúde, na educação, na assistência social e nos serviços de apoio militar. A enfermagem foi a profissão feminina mais consensual durante a guerra. A Croce Rossa Italiana recrutou dez mil damas enfermeiras e as associações religiosas, feministas e filantrópicas recrutaram outras dez mil que serviram em hospitais territoriais e de campanha, postos de socorros, ambulâncias e comboios sanitários. Em França, as três Sociedades da Croix-Rouge Française, a Société de Secours aux Blessés Militaires, a Union des Femmes de France e a Association des Dames Françaises mobilizou em 1914 vinte e três mil diplomadas e em 1918 eram cem mil as francesas ocupadas nos serviços de saúde militares. Em Portugal, Ana de Castro Osório sugeriu também ao governo da União Sagrada a mobilização oficial das mulheres mas será a Cruzada das Mulheres Portuguesas a fazê-lo, ainda que oficiosamente, através da "Inscrição Patriótica", lançada em Abril de 1916. A Alemanha recrutou as mulheres mais cedo para os serviços auxiliares do exército e para a administração e assistência, com o reconhecimento do Nationaler Frauendienst, enquanto a Sérvia e a Rússia as recrutaram para combaterem. É célebre o "batalhão da morte" comandado por Mariya Bochkareva, criado em 1917 pelo governo Kerenski para humilhar e envergonhar os homens desertores. Alemãs, americanas, austríacas, britânicas, francesas, húngaras e italianas prestaram serviço nas ambulâncias, nos comboios sanitários, nos hospitais de sangue de primeira ou segunda linha e nos hospitais da retaguarda em que feridos, mutilados e doentes convalesciam ou reaprendiam a viver e a trabalhar. Conduziram ambulâncias e outros veículos e trabalharam como secretárias, dactilógrafas, telefonistas, provisoras e cozinheiras nas bases militares. Apesar de na época ser difícil conceber a mulher soldado, a Grã-Bretanha criou em 1917 o Women's Army Auxiliary Corps que em 1918 já reunia quarenta mil mulheres, das quais oito mil e quinhentas operavam em países estrangeiros, sobretudo em França. Os políticos e os militares conferiram sempre um carácter provisório às múltiplas funções desempenhadas pelas mulheres durante a guerra, pelo receio de masculinização e da inversão de papéis e pela preservação das imagens tradicionais de feminilidade e masculinidade. Todavia, elas esperavam manter os seus postos de trabalho, a independência económica, a autonomia individual e a liberdade de ação que a guerra lhes permitiu. Portugal, embora não estivesse formalmente em guerra, já tinha soldados a combater em Angola e Moçambique muito antes de Março de 1916, data em que se tornou oficialmente beligerante. Os homens foram mobilizados e as mulheres automobilizaram-se, antecipando-se a qualquer iniciativa governamental. É este o tema que aqui se pretende abordar, a mobilização, organização e ativismo das mulheres portuguesas no período da Grande Guerra, com destaque para as associações de apoio aos combatentes e demais vítimas da guerra. É, por enquanto, parte de um projeto de investigação e de estudo empírico das experiências das mulheres que se empenharam no esforço de guerra e procuraram por essa via ganhar reconhecimento social e direitos cívicos e políticos. Neste movimento associativo encontram-se mulheres feministas, republicanas, monárquicas, católicas e anticlericais, todas apostadas numa maior intervenção social e na assistência hospitalar, tanto na frente de combate como na retaguarda. O voluntariado feminino nos outros países em guerra constituiu exemplo e incentivo para as portuguesas que, partindo embora de diferentes motivações ideológicas e políticas, se mobilizaram e associaram em projetos de trabalho semelhantes. As feministas, após alguma hesitação entre os compromissos pacifistas e o patriotismo, aderiram à propaganda da guerra e à defesa da intervenção portuguesa, enquanto a maioria que protagonizou a criação das associações mobilizou-se após a declaração de guerra da Alemanha a Portugal, em 9 de Março de 1916. Aos primeiros ecos da guerra, as feministas da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e da Associação de Propaganda Feminista, pela voz das dirigentes mais carismáticas, Ana de Castro Osório (1872-1935) e Maria Veleda (1871-1955), não hesitaram entre os compromissos internacionais pacifistas e a defesa da beligerância portuguesa. Depressa alinharam com o Partido Democrático, apoiando o seu projeto intervencionista que visava o reconhecimento e o prestígio internacional do regime, a legitimação nacional e o fim das clivagens internas entre os republicanos, na defesa da integridade territorial e da identidade nacional. O Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado em 1914, embora se declarasse inicialmente pacifista, acabará por julgar imprópria a defesa do pacifismo, logo que Portugal se torna beligerante. Esta associação feminista, convidada a participar no Congresso Internacional Pacifista, realizado em Haia em 1915, será dissuadida de comparecer pelo International Council of Women, no qual estava filiada, diretiva extensiva a todos os Conselhos Nacionais. Também a Associação de Propaganda Feminista não aceitará o convite da International Women Suffrage Alliance para participar no dito Congresso, com o argumento de que a propaganda pacifista beneficiava os interesses da Alemanha. As portuguesas alinharam maioritariamente pelo manifesto das feministas francesas que repudiava a propaganda pacifista, porque "enquanto a guerra durasse, as mulheres do inimigo eram também o inimigo". As tensões entre pacifismo, militarismo e beligerância extremaram posições e fizeram algumas vítimas nas hostes feministas. Gabrielle Duchène que chefiava a seção francesa da Comissão Internacional para a Paz Permanente foi acusada de traição e expulsa do Conselho Nacional das Mulheres Francesas e a professora feminista Hélène Brion foi julgada em Conselho de Guerra por distribuir propaganda pacifista. Clara Zetkin e outras ativistas socialistas que participaram na Conferência Internacional da Paz em Berna, em 1915, também foram presas quando regressaram à Alemanha. Em Portugal, Ana Castilho, Ana de Castro Osório e Maria Veleda, entre outras, acusavam de traição e germanofilia todas e todos os que não apoiavam o intervencionismo português. Como afirmam Alison S. Fell e Ingrid Sharp, a guerra marca o início da crise dos movimentos feministas e testou a força da fraternidade internacional, estabelecida desde os finais do século XIX, obrigando as feministas a optar entre o "natural" pacifismo e o militarismo. Nos países beligerantes, as feministas inclinam-se para o apoio aos projetos dos governos nacionais e cortam as relações com o internacionalismo, interrompendo a luta pelo sufrágio. Françoise Thébaud, conclui que o patriotismo venceu o pacifismo e o internacionalismo do movimento feminista como venceu o internacionalismo operário. Em Portugal, logo em 1914, Ana de Castro Osório, Ana Augusta Castilho (?-1916), Antónia Bermudez e Maria Benedicta Mouzinho de Albuquerque Pinho fundaram a Comissão Feminina «Pela Pátria» com o objetivo de fazer a propaganda patriótica e mobilizar as associações femininas e as mulheres portuguesas para a confeção de agasalhos e a recolha de donativos para os soldados e outras vítimas da guerra. Esta Comissão teve origem na Associação de Propaganda Feminista, foi apoiada pela Liga Republicana das Mulheres Portuguesas e constituiu a base da Cruzada das Mulheres Portuguesas, fundada em 27 Março de 1916, por iniciativa de Elzira Dantas Machado (1865-1942), esposa de Bernardino Machado, à época Presidente da República. A nova "instituição patriótica e humanitária" agregou as mulheres da elite política republicana e militantes feministas e teve um papel relevante na criação e gestão de unidades hospitalares, auxiliares dos serviços de saúde do exército, como o Instituto Médico-Cirúrgico de Campolide, o Instituto de Reeducação dos Mutilados de Guerra, o Hospital de Recuperáveis de Hendaia e a Escola de Enfermagem de Guerra. Fundou também a Escola Profissional nº. 1, em Lisboa e a Escola Agrícola de Alcobaça para as filhas dos combatentes; a Casa do Trabalho e as Escolas de Rendas e Bordados Tradicionais, destinadas a ensinar uma profissão e a dar trabalho às mulheres dos mobilizados sem meios de subsistência e as creches e orfanatos para acolher e educar os órfãos de guerra. Instituiu também a Obra dos Afilhados de Guerra, recolheu donativos, agasalhos e outros bens para os soldados e prisioneiros de guerra. Este trabalho era coordenado pelas comissões central e administrativa e assegurado pela comissão de propaganda e organização do trabalho, a comissão angariadora de donativos, a comissão de assistência aos militares mobilizados, a comissão hospitalar, a comissão de enfermagem, a comissão de assistência às mulheres dos mobilizados e a comissão de assistência aos filhos dos soldados em campanha. A Cruzada das Mulheres Portuguesas dinamizou a criação de 72 subcomissões em todo o país, nas colónias e no Brasil. A Subcomissão Feminina da Grande Comissão "PróPátria", criada em 1916 pela comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, representava a Cruzada das Mulheres Portuguesas no Brasil. Era constituída pelas esposas dos diplomatas e da elite emigrada e recolhia donativos noutras cidades com a colaboração de subcomissões e associações locais, canalizando-os depois para a assistência hospitalar da Cruzada. A Grande Comissão Portuguesa PróPátria que agregou republicanos e monárquicos construiu o Asilo-Escola Pró-Pátria para os Órfãos de Guerra, na Quinta dos Vales, em Coimbra, património que viria a ser doado ao Estado Português e transformado no Hospital Sanatório da Colónia Portuguesa do Brasil e mais tarde conhecido como Hospital dos Covões. No campo republicano nasceu também no Porto, em Agosto de 1916, o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte, sob a presidência de Filomena Nogueira de Oliveira, com a finalidade de organizar e gerir a Casa dos Filhos dos Soldados. Constituído por 21 mulheres da elite republicana, assumidamente democratas e patriotas, encarregou-se do acolhimento, educação e formação profissional dos órfãos da guerra, promoveu atividades culturais para angariar fundos e mobilizou a sociedade portuense para apoiar o orfanato e participar nas manifestações cívicas em homenagem à memória dos que caíram em combate. A Casa dos Filhos dos Soldados garantia aos internados a instrução primária e complementar, a educação moral e cívica, o desenvolvimento do espírito de união, solidariedade e utilidade social e os lazeres indispensáveis à saúde do corpo e satisfação do espírito. Esta obra de guerra sobreviveu até aos nossos dias, como orfanato, escola e lar dos filhos dos combatentes, adaptando-se às contingências da história do país. As monárquicas e católicas foram ainda mais lestas a mobilizar-se no apoio material e moral aos combatentes, anunciando em 20 de Março de 1916, a criação da Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra, uma associação que se apresentava "sem qualquer cor política", presidida pela Condessa de Burnay, Maria Amélia de Carvalho Burnay (1847-1924), substituída mais tarde pela Condessa de Ficalho, Maria Josefa de Mello (1863-1941). Esta associação reunia os nomes mais sonantes da aristocracia e da alta burguesia ligados à alta finança e aos grandes negócios, tendo na retaguarda Tomás de Mello Breyner, muito empenhado na assistência religiosa aos soldados em campanha. Além do apoio aos soldados e famílias, esta associação pretendia também ter um papel importante na assistência hospitalar com a criação de uma Escola de Enfermagem, aberta a mulheres de todos os estratos sociais para a aprendizagem de uma profissão digna e nova carreira de futuro. À semelhança do que acontecia nos outros países em guerra, pretendiam servir o país como enfermeiras, ombreando com as mulheres do povo, animadas "na mesma fé, no cumprimento nobilíssimo do dever". O projeto da Escola de Enfermagem, acarinhado pelos médicos Tomás de Melo Breyner e Reinaldo dos Santos, foi travado pelo governo que obrigou as senhoras da Assistência a frequentar os cursos da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha. Autorizada apenas a criar obras de beneficência, fundou a Casa Maternal, a Casa da Assistência, um Dispensário que fornecia consultas médicas, alimentos e medicamentos e a obra das Madrinhas de Guerra, a cargo de Sofia Burnay de Mello Breyner, mais tarde, Condessa de Mafra. Esta associação criou também núcleos nas capitais de província e sedes de concelho, com destaque para o núcleo do Porto. Genoveva de Lima Mayer Ulrich foi a grande dinamizadora das Festas da Flor que mobilizaram cerca de 1200 mulheres em Lisboa, Porto e Coimbra. Com as verbas recolhidas, ela propôs e obteve do governo sidonista a fundação de um hospital para os soldados que regressassem psicologicamente afetados pelas experiências de guerra, o que demonstra a sensibilidade e a modernidade da proposta, visto que só meio século volvido se começou a dar importância aos traumas psicológicos dos combatentes. Com objetivos semelhantes aos da Assistência, nasceu em Coimbra, em Abril de 1916, a Sociedade da Cruz Branca, sob a presidência de Maria Isabel Pinto da França de Tamagnini de Abreu e Silva (1861-1949) que, após a nomeação do seu marido para o comando do CEP, cedeu o lugar a Maria Benedicta Barbosa Falcão de Azevedo Bourbon (1879- 1957), Condessa do Ameal. Embora não se lhe conheçam obras próprias colaborou com as senhoras da assistência, na recolha de fundos e no apoio aos mobilizados, sobretudo na Obra das Madrinhas de Guerra. As Damas Enfermeiras da Sociedade da Cruz Vermelha Portuguesa que prestaram serviço nos hospitais de retaguarda, como o Hospital Temporário da Junqueira, o Hospital para Tifosos no Porto e outros pequenos hospitais no norte do país, criados por ocasião da epidemia da pneumónica, bem como nos hospitais da frente de combate, Hospital de Ambleteuse e hospitais de sangue do Corpo Expedicionário Português, eram maioritariamente mulheres com ligações à Assistência das Portuguesas às Vítimas de Guerra. Citam-se algumas, oriundas de famílias da nobreza e da alta burguesia, como Maria Antónia Jervis de Atouguia Ferreira Pinto Basto (1852-1930), chefe das enfermeiras no Hospital de Ambleteuse, Ana José da Costa Guedes, chefe das enfermeiras no Hospital do Porto, Eugénia Manoel, Luiza Zarco da Câmara, Maria Amélia Sotto Mayor, Maria da Câmara Leme, Maria de Jesus Zarco da Câmara e Maria Mayer, entre outras. Maria Antónia, uma mulher culta, inteligente e perseverante, fez parte da Comissão da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha que em França estabeleceu ligações com as British Red Cross e as chefias militares inglesas para a construção do hospital português em Ambleteuse. Ela negociou a escolha do local e os apoios ingleses, seguiu as obras de construção e preparou a receção dos primeiros médicos e enfermeiras portuguesas nos hospitais da frente de combate. As enfermeiras da Cruzada das Mulheres Portuguesas receberam formação especializada para tratarem dos mutilados da guerra, usaram novas técnicas de reeducação e foram elogiadas pela dedicação e carinho que puseram na recuperação dos internados para os restituírem à vida social e profissional e poderem ganhar a vida com dignidade. As Damas Enfermeiras da Cruz Vermelha foram reconhecidas pela competência técnica e louvadas pelo Comando do CEP, pela abnegação, dedicação e virtudes cívicas no desempenho da profissão. As que participaram na assistência aos feridos na Batalha de La Lys foram inexcedíveis na ajuda prestada aos médicos, sendo louvadas especialmente pelo voluntarismo e carinho dispensado aos combatentes. As enfermeiras tiveram um papel fundamental no quadro da guerra, pela dedicação e empenho ao serviço dos outros e pelo pioneirismo no exercício de uma profissão militarizada que invadiu o território masculino e testou os limites da resistência física e psicológica feminina. Num mundo de homens, enfrentaram resistências e preconceitos de género e tornaram mais fluidas as fronteiras de género. A aventura de partir para um cenário de guerra, deixando a família, revelou-se áspera e difícil. Algumas tiveram dificuldade em aguentar psicologicamente a realidade da guerra enquanto outras não desmobilizaram com o fim do conflito armado e continuaram a exercer a profissão. Ir para a guerra terá representado a oportunidade de participar, tal como os homens, na honra e grandeza da Pátria, mas também ter protagonizado a construção de uma profissão de mérito, ganhar uma nova liberdade e maior consciência política e contribuir para o avanço da emancipação e a conquista de direitos.


Raízes do associativismo republicano e católico

A Comissão Feminina «Pela Pátria», a Cruzada das Mulheres Portuguesas e o Núcleo Feminino de Assistência Infantil da Junta Patriótica do Norte situam-se no contexto do movimento feminista português que desde 1906 se organizou em associações de cariz pacifista, feminista, sufragista e político com ligações ao republicanismo e à Maçonaria, organizações que muito influenciaram a sua ação e o rumo das suas reivindicações. As principais dinamizadoras da Cruzada, Ana de Castro Osório, Elzira Dantas Machado e suas filhas pertenceram desde sempre à Liga Republicana das Mulheres e à direção da Associação de Propaganda Feminista, sendo esta última associação o laboratório de ideias e de intervenção cívica que levou à fundação da Cruzada. A Cruzada foi a única associação que agregou mulheres sem qualquer experiência associativa e muitas das ativistas que tinham lançado e consolidado o movimento feminista da 1.ª vaga. O grupo fundador do Núcleo Feminino da Junta Patriótica do Norte, constituído por mulheres da elite republicana do Porto tinha ligações às fundadoras da Cruzada. Ana de Castro Osório, Filomena Nogueira de Oliveira e o Dr. Alberto de Aguiar, presidente da Junta Patriótica do Norte, mantinham relações institucionais e de amizade. Nas cerimónias e manifestações cívicas promovidas pela Junta Patriótica do Norte e pela Casa dos Filhos dos Soldados, Ana de Castro Osório estava sempre presente. O jornal A Semeadora da Associação de Propaganda Feminista tornou-se o órgão de imprensa oficioso da Cruzada das Mulheres Portuguesas e dava relevo à ação do Núcleo Feminino de Assistência Infantil. O associativismo católico durante a guerra surgiu no prolongamento das associações pias de caridade, beneficência e filantropia fundadas e dirigidas pelas mulheres da aristocracia. A Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra e a Sociedade da Cruz Branca fazem parte do movimento de mobilização feminina na frente interna com vista à intervenção pública na assistência social, para além do terreno caritativo, que procurava marcar presença e ganhar reconhecimento público, apesar da resistência ideológica ao regime republicano. Pretendendo ultrapassar e desconstruir a tradicional interpretação da aliança entre feminismo e modernidade e catolicismo e conservadorismo, a mobilização, organização e ação das católicas e monárquicas inclui-se aqui no debate da democratização política como um processo de cultura cívica e de inclusão do Outro que pode seguir diferentes vias. Os discursos produzidos revelam elementos progressistas que podem constituir novas propostas de cidadania política e novos contributos para ampliar a "conceção das mulheres como sujeitos políticos da História".


 As relações das organizações femininas com o poder político

A Cruzada das Mulheres Portuguesas nasceu sob a égide do governo da União Sagrada e por ele foi apoiada até ao advento do Sidonismo. O núcleo fundador reunia quase uma centena de mulheres, esposas, filhas e parentes próximas dos republicanos do governo da União Sagrada e de outros órgãos do poder. Nas direções das várias Comissões estavam as mulheres dos políticos mais em evidência, com destaque para os do Partido Democrático. Norton de Matos, ministro da Guerra, concedeu à Cruzada vários benefícios dos quais se destacam a cedência de edifícios e meios para a criação de um serviço autónomo de assistência médico-cirúrgica com a criação da Escola de Enfermagem e dos hospitais de Campolide, Arroios e Hendaia, a isenção de franquia na correspondência, a autorização de uma lotaria patriótica e a equiparação à Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha em direitos e garantias nacionais e internacionais como auxiliar dos serviços de saúde do exército. A Cruzada foi tratada como parceira do governo no que toca à propaganda da guerra e às estruturas de apoio aos combatentes, suas famílias e órfãos. O governo tinha o dever de providenciar as estruturas de apoio ao esforço de guerra mas preferiu delegar essas funções nas mulheres. Esta atitude pode refletir a vontade de satisfazer as reivindicações femininas de uma maior autonomia, responsabilidade e intervenção na sociedade mas também uma forma de condicionar e controlar o seu campo de ação. Na verdade, os governos da União Sagrada condicionaram e limitaram a liberdade de ação das monárquicas e católicas. Receando o ressurgir da sua influência sobre as populações e, sobretudo, sobre os combatentes e as famílias, coartou os seus projetos de intervenção na assistência hospitalar. Elas realizarão os seus anseios, diretamente ou por interpostas pessoas da sua confiança, através da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha. Inscreveram-se nos cursos de enfermagem, diplomaram-se e trabalharam no Hospital Temporário da Junqueira, cujas instalações foram cedidas pela Condessa de Burnay, no Hospital para Tifosos instalado no Hospital para Crianças Maria Pia, e no Hospital de Ambleteuse, sendo as primeiras enfermeiras portuguesas a pisar o solo francês. A Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, tinha nos seus órgãos diretivos os nomes das mais distintas famílias da aristocracia e da alta burguesia, sendo desde sempre entendida como instituição dirigida e apoiada pelas elites monárquicas e católicas. Os conflitos ideológicos entre republicanos, monárquicos e católicos refletir-se-ão também nas relações entre o governo da União Sagrada e a direção da Cruz Vermelha. Esta foi condicionada na sua ação, limitada nas suas funções e poderes e inibida na sua autonomia para conceber e gerir projetos próprios no contexto da guerra. O governo colocou-lhe entraves, demorou a dar-lhe autorização para agir e concedeu à Cruzada direitos e benefícios que eram exclusivo seu pela Convenção de Genebra. As negociações para a construção do hospital em França foram dificultadas tanto por políticos como por militares que, aparentemente enredados em burocracias, tudo protelavam e nada decidiam, de modo que o hospital só foi inaugurado a 9 de Abril de 1918, data da Batalha de La Lys. Esta inoperância foi criticada publicamente por alguns dirigentes da Cruz Vermelha e pela oposição política. O Sidonismo alterou esta relação de forças. A Cruzada e as mulheres ligadas por laços familiares ao anterior governo foram denegridas publicamente e perseguidas politicamente, forçando algumas delas ao exílio. É o caso de Elzira Dantas Machado e suas filhas, e Alzira Abreu Costa. A Comissão de Enfermagem perdeu autonomia, os hospitais foram tomados pelo Estado e a Cruzada perdeu mpoderes e campo de ação. Todavia, Sidónio Pais serviu-se da obra da Cruzada para obter louros políticos, sobretudo no que toca aos Mutilados de Guerra. A Assistência das Portuguesas às Vítimas da Guerra ganhou novo fôlego, visto a nova presidente, Condessa de Ficalho, ser admiradora e colaboradora assídua de Sidónio Pais. Haverá que averiguar se a vertente de cidadania política de que se revestiu a ação da primeira fase não se esboroou e diluiu nas obras de caridade que no Sidonismo se identificaram com as sopas dos pobres. As relações das mulheres com o poder político estiveram sujeitas às opções ideológicas dos governos e respetivas estratégias na conduta da guerra. O programa intervencionista da União Sagrada e o "triunfo da contra mobilização" do Sidonismo marcaram profundamente a ação de republicanas e monárquicas na medida em que umas e outras eram apoiadas ou hostilizadas, incentivadas ou coartadas na sua ação pública de intervenção social e política. 


Fonte: Centenário da Primeira Guerra Mundial (1914-2014). A Grande Guerra, in Amphora, Revista de divulgação histórica da Associação de Professora de História, número 2, outubro de 2014. 


O discurso patriótico das feministas portuguesas

A adesão das mulheres ao programa radical do governo de levar Portugal para a Guerra é consonante com o que se passou nos outros países beligerantes. As portuguesas seguiram a maioria das organizações feministas estrangeiras que abandonaram os compromissos com o internacionalismo e o pacifismo para apoiarem os seus países, em nome do patriotismo. Ao eclodir da guerra, Maria Veleda condenou o militarismo, o imperialismo e as rivalidades económicas e coloniais que conduziam os povos à destruição e à morte, apelou a uma greve geral e declarou guerra à guerra. Pacifista, embora não militante, com o alastrar da guerra, apoiou o programa intervencionista e juntou-se à propaganda patriótica, em defesa dos interesses nacionais e em nome da Justiça, da Liberdade, do Progresso e da Democracia. Ana de Castro Osório, militarista assumida que não acreditava na paz perpétua e defendia o dever de os Estados se prepararem para a guerra, foi a mais acérrima defensora do intervencionismo de Portugal. Ela via na guerra a grande oportunidade de as mulheres mostrarem a sua inteligência e capacidades na manutenção da sociedade civil e procurou por todos os meios mobilizá-las para ocuparem os lugares dos homens em todos os sectores da economia, na política e na cultura, a fim de prepararem um futuro mais justo e igualitário e dinamizarem o progresso material e intelectual do país. Os homens foram mobilizados e as mulheres tinham o dever de se mobilizarem também, unindo toda a Nação no projeto comum pelo bem da Pátria. Elas não podiam desmerecer a memória das suas antepassadas que, desde o tempo das descobertas e conquistas, fizeram frente à ausência dos homens e honraram a raça e o nome de Portugal. Ao esforço dos homens na guerra havia de corresponder igual esforço das mulheres na economia e na sociedade para que o país se regenerasse. No regresso os homens reconheceriam esse esforço e os políticos recompensariam os sacrifícios femininos com a concessão de direitos políticos A propaganda patriótica inspirava-se e assemelhava-se à de outros países beligerantes. António Salandra, político italiano em evidência na Grande Guerra, também dizia "Chi non dà alla Patria il braccio deve dare la mente, i beni, il cuore, le rinunce, i sacrifici." O discurso das feministas portuguesas revela um patriotismo que deriva do amor e fidelidade à pátria, real ou imaginada, na aceção de Benedict Anderson, terra dos pais mas também terra-mãe, berço e pertença de uma comunidade autónoma, unida pelos laços étnicos, linguísticos, culturais e históricos, "regaço acolhedor" da nação política, assente no ideal da cidadania democrática, de que o Estado Nação era o emblema e o garante. As feministas, salvo raras exceções, alinharam inicialmente pelo discurso pacifista, ligado ao mito da feminilidade e da maternidade e que se tinha tornado uma via da participação pública das mulheres. Mas perante a inevitabilidade da participação portuguesa na frente europeia aderiram ao patriotismo, apresentado como "benigna e respeitável forma de nacionalismo", que legitimava a guerra como fonte de regeneração da raça e da nação, identificada com os ideais da masculinidade e o militarismo. O papel da imprensa feminista foi importante na propagação de ideias, na formação de uma comunidade alargada de leitoras, na mobilização das mulheres para a intervenção pública e a adesão à propaganda patriótica, na informação sobre o empenho feminino na frente interna de outros países, na desconstrução dos mitos da masculinidade e da feminilidade e na discussão de temas incómodos como as violações, as gravidezes indesejadas, o aborto de "L'enfant du barbare" e as deportações de mulheres e crianças nos territórios ocupados pelos alemães. Durante a guerra, as mulheres conquistaram terreno tradicionalmente masculino, ganharam autonomia, valorizaram-se individual e profissionalmente, reconstruiram identidades, esbateram fronteiras nas relações de género e avançaram no processo de libertação, emancipação e igualdade entre os sexos. Os consensos deixam de existir quanto se discute se estes ganhos foram provisórios ou tiveram continuidade no pós-guerra e se houve ou não um retorno à ordem e hierarquia social anterior, com o reforço dos mitos das identidades, das relações de género e dos valores da maternidade. Tudo indica que, acabada a guerra, elas regressaram ao lar e ficaram prisioneiras das políticas do pós-guerra que as obrigaram a ceder o trabalho remunerado aos homens e a gerar filhos para repor a população. A recompensa pelo esforço e sacrifício feminino não foi imediata, pois a concessão do direito de voto como expressão da cidadania política não foi linear. Se alguns países o concederam durante o conflito ou no seu rescaldo, outros sonegaram-no até às décadas de 40 e de 70. Na Dinamarca, as mulheres tiveram o voto em 1915, nos Países Baixos em 1917, na Alemanha, na Polónia e no Reino Unido em 1918, na Bélgica e na Suécia em 1919, na França em 1944, na Itália em 1945, na Suíça em 1971 e em Portugal só após o 25 de Abril de 1974 se estabeleceu o voto para todas as mulheres. A guerra suspendeu temporariamente as normas vigentes e permitiu que as mulheres fossem além do que era suposto em tempo de paz. Elas tiveram a sensibilidade e a inteligência para aproveitar a brecha que a guerra abriu para alterar o seu estatuto familiar e social. Se é certo, como diz Françoise Thébaud, que as mães de família ficaram mais sós e mais sobrecarregadas de trabalho e de responsabilidades, as jovens libertaram-se da tutela masculina e da vigilância materna, autonomizaram-se com o trabalho remunerado, ganharam novas profissões, valorizaram-se e construíram uma nova identidade, uma nova Mulher com um novo espírito, novos hábitos, desejos e expectativas, não só em relação a si próprias mas também em relação à sociedade dos novos tempos do pós-guerra. 

- Vídeo Criativo sobre a Primeira Guerra Mundial -

Ana Matilde Reis e Mariana Rodrigues (2018)

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